Por: Vasco C. Romão (Médico reumatologia)
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A doença de Sjögren é uma
patologia reumática. O sistema imunitário desregulado ataca tecidos e órgãos
saudáveis, em particular as glândulas salivares e lacrimais. No âmbito das
doenças raras, estima-se que em Portugal entre 5.000 a 6.000 cidadãos padeçam
da enfermidade identificada ainda na primeira metade do século XX. Causas,
sintomas e tratamento dão-nos o mote para uma entrevista ao médico
reumatologista Vasco C. Romão.
Fadiga inexplicável e
incapacitante, dores articulares e secura da boca, dos olhos, da pele e
vaginal, estão entre os sintomas “palpáveis” da doença de Sjögren, uma
patologia rara, caracterizada pela desregulação do sistema imunitário, que
ataca tecidos e órgãos saudáveis. Uma doença que “pode aparecer em qualquer
idade e em ambos os sexos, mas afeta nove vezes mais mulheres do que homens e
surge mais frequentemente após os 45 anos de idade”, salienta Vasco C. Romão,
Professor Auxiliar Convidado da Faculdade de Medicina da Universidade de
Lisboa. Em Portugal, não obstante a inexistência de dados concretos sobre o
número de cidadãos afetados por esta doença estima-se que se possa situar entre
5.000 a 6.000.
Embora não exista cura para a
doença de Sjögren, vários tratamentos podem ajudar a controlar os sintomas,
coadjuvados por fármacos. A Reumatologia é a especialidade da Medicina que se
dedica ao estudo deste tipo de doenças reumatológicas sistémicas, as que
envolvem vários órgãos e sistemas. “Todas as pessoas com a suspeita de doença
de Sjögren devem ser encaminhados pelo Médico de Família para uma consulta
hospitalar de Reumatologia”, alerta em entrevista Vasco C. Romão, coordenador
da Consulta de Síndrome de Sjögren na ULS Santa Maria e também investigador.
Perceber as doenças também
implica conhecermos um pouco da sua história. Henrik Sjögren, um oftalmologista
sueco, identificou pacientes com esta doença na década de 1930. Em que contexto
se deu esta descoberta?
Henrik Sjögren era um
oftalmologista sueco (1899-1996), que foi enviado em 1929 pelo Colégio Sueco de
Medicina para Jönköping, uma cidade a 300 km de Estocolmo, a fim de examinar um
grupo de imigrantes de ascendência sueca provenientes da Ucrânia. Esta população
tinha uma prevalência elevada de tracoma, uma infeção ocular [conjuntivite]
crónica provocada pela “famosa” Chlamydia trachomatis, que originava secura
ocular por destruição das células produtoras de muco. Um ano depois, em 1930,
como interno de Oftalmologia em Estocolmo, observou uma senhora com diminuição
da produção de lágrima, saliva e suor, associados a uma história de “reumatismo
crónico”. A este caso foram acrescentados outros dois, semelhantes, tendo sido
os primeiros três doentes descritos com secura ocular no contexto da doença
atualmente designada por Doença - ou síndrome, designação a ser abandonada - de
Sjögren. Em 1933, publicou a sua tese de doutoramento que incluiu dezanove
doentes com esta patologia, dez dos quais com sinais de inflamação e deformação
das articulações.
Como se
manifesta a Doença de Sjögren?
A doença ou síndrome,
designação a ser abandonada - de Sjögren é uma doença reumática em que o
sistema imunitário desregulado ataca tecidos e órgãos saudáveis, em particular
as glândulas salivares e lacrimais. O processo inflamatório crónico destrói os
tecidos e leva a sintomas como a boca e olhos secos. A falta de saliva e lágrima podem originar
problemas dentários (cáries) com dificuldade em mastigar ou engolir, ou
sensação de areia nos olhos e feridas na parte da frente do olho (córnea).
Existe também uma inflamação no resto do corpo que origina outros sintomas
frequentes como o cansaço intenso e inexplicável e as dores nos músculos e
articulações. Pode ainda haver episódios de “papeira” na idade adulta e em até
30 a 40% dos casos afeta outros órgãos, causando sintomas como febre, suores à
noite, perda de peso, inchaço das articulações ou gânglios linfáticos, manchas
vermelhas ou roxas na pele, anemia, diminuição plaquetas e glóbulos brancos. Em
casos mais raros pode ainda atingir os pulmões, rins, tiroide, fígado,
pâncreas, nervos ou cérebro (muito raro).
Há mais
do que um tipo de Doença de Sjögren?
Na verdade, há apenas uma
Doença de Sjögren. O termo Doença de Sjögren secundária, historicamente
utilizado e a ser progressivamente abandonado, designa casos em que existe uma
outra doença reumatológica autoimune (artrite reumatoide, lúpus, esclerose sistémica,
entre outras) e, em simultâneo, queixas de olho e boca seca, ou outros sintomas
sugestivos. Hoje em dia sabemos que a Doença de Sjögren pode existir em
simultâneo com outras doenças, não sendo “secundária” às mesmas, mas sim uma
doença individualizada e específica.
É conhecida a causa para esta
doença autoimune? Tem peso a predisposição genética ou questões ambientais?
Tal como a maioria das doenças
reumatológicas imunomediadas não existe - ou não é conhecida ainda - uma causa
única. Habitualmente existe uma predisposição genética geral para este tipo de
doenças, como por exemplo, uma tia, avó ou primo com lúpus ou artrite
reumatoide que forma um “terreno fértil” no qual alguns estímulos ambientais
como o tabaco, infeções, stress, alimentação, entre outros, podem levar ao
desenvolvimento da doença. Algumas infeções virais, como por exemplo a
mononucleose, foram associadas ao aumento do risco de vir a ter doença de
Sjögren, mas não foi até ao momento possível definir uma relação causa-efeito
clara.
Há grupos
de população mais afetados?
A doença de Sjögren pode
aparecer em qualquer idade e em ambos os sexos, mas afeta nove vezes mais
mulheres do que homens e surge mais frequentemente após os 45 anos de idade.
Assim, as mulheres na idade pós-menopausa são o grupo mais afetado. Geralmente,
as pessoas mais jovens (20-30 anos) não têm tantos sintomas de secura dos olhos
e boca, apesar de terem ou poderem ter outros sintomas típicos, e o diagnóstico
é feito apenas mais tardiamente.
Como é
feito o diagnóstico?
O diagnóstico é feito com base
nos sintomas, observação clínica e resultados de análises e outros exames
complementares. A avaliação pelo Reumatologista, Oftalmologista e
Estomatologista/Dentista é essencial e deve ser realizada sempre que possível
numa fase inicial. O exame clínico avalia a existência e gravidade da secura da
boca e olhos, de inchaços das glândulas salivares, gânglios linfáticos ou
articulações, manchas na pele e outras alterações.
A função das glândulas
salivares pode ser medida pela quantidade de saliva produzida num determinado
período ou pela cintigrafia das glândulas salivares. A falta de lágrima e a
pesquisa de úlceras (feridas) na córnea podem ser feitas em consulta de Oftalmologia.
As análises mais importantes incluem os anticorpos antinucleares (ANA),
anti-SSA/anti-SSB e o fator reumatoide. A biopsia das glândulas salivares
labiais, um procedimento simples em que são retiradas algumas das glândulas
salivares pequenas que existentes na mucosa da boca, identifica uma inflamação
específica. O diagnostico é sempre clínico e feito com base na opinião do
Reumatologista, tendo em conta a sua observação e o resultado dos exames.
Nenhum exame faz o diagnostico isoladamente.
Há cura
para esta doença ou apenas tratamento para o alívio dos sintomas?
Embora não exista cura para a
doença de Sjögren, vários tratamentos podem ajudar a controlar os sintomas.
Adicionalmente, alguns medicamentos imunomoduladores ou imunossupressores podem
ajudar a modificar a evolução da doença. Por fim, existem em curso vários
ensaios clínicos em fases avançadas que podem vir a originar no futuro
medicamentos aprovados especificamente para esta doença.
Como é
feito o tratamento?
Dado o envolvimento da boca e
olhos, é fundamental ter bons cuidados de saúde oral e ocular, com avaliação
frequente pelo Estomatologista/Dentista e Oftalmologista. O uso de lágrima e
saliva artificial são importantes para aliviar os sintomas de secura. Em casos
graves podem ser utilizados géis orais ou oculares, a ciclosporina tópica
ocular, o que controla a inflamação das glândulas lacrimais, ou o encerramento
do canal lacrimal. A pilocarpina aumenta a produção de saliva e está indicada
para o tratamento de sintomas mais graves. Adicionalmente, as dores articulares
e musculares podem ser tratadas com anti-inflamatórios ou, quando existe
artrite (inflamação articular), corticoides em baixa dose ou medicamentos
imunomoduladores como a hidroxicloroquina, o metotrexato ou a leflunomida. A
fadiga pode melhorar com alguns destes e com o exercício físico. O tratamento
de outras manifestações mais graves depende dos órgãos afetados e requer
habitualmente doses mais altas de corticoides ou medicamentos imunossupressores.
É
possível dar-nos uma estimativa do número de portugueses com esta doença?
Não existem dados concretos em
Portugal. Pensava-se que fosse uma das doenças reumáticas inflamatórias mais
comuns, mas estudos europeus recentes estimam que afete menos de 0,1% da
população geral (0,03 a 0,05%). Isto significaria que até cerca de 5.000 a
6.000 portugueses podem ter a doença de Sjögren. O estudo PORTRESS, com base no
Registo Nacional dos Doentes Reumáticos [Reuma.pt], é o primeiro a avaliar as
características de mais de 1300 pessoas com esta doença em Portugal.
Em
Portugal, os portadores desta doença encontram resposta por parte dos sistemas
de saúde, nomeadamente no que respeita a consulta e acompanhamento posterior?
Todas as pessoas com a
suspeita de doença de Sjögren devem ser encaminhados pelo Médico de Família
para uma consulta hospitalar de Reumatologia. Apesar de ainda existirem algumas
lacunas nalgumas zonas e hospitais do país, onde lamentavelmente não existe a
especialidade de Reumatologia, o SNS em geral, e os reumatologistas em
particular, têm capacidade para dar resposta ao diagnóstico, seguimento e
tratamento das pessoas com esta doença.
A Reumatologia é a
especialidade da Medicina que se dedica ao estudo deste tipo de doenças
reumatológicas sistémicas - ou seja, que envolvem vários órgãos e sistemas -,
tendo um currículo extenso e exigente de formação (internato) no diagnóstico,
tratamento e monitorização de todas as doenças reumáticas, incluindo a Doença
de Sjögren. A colaboração com outras especialidades, sobretudo neste caso
Oftalmologia e Estomatologia, é fundamental para o adequado cuidado destes
doentes. Adicionalmente, consoante o tipo de envolvimento de outros órgãos,
pode ser necessária a avaliação e orientação por outras especialidades médicas,
nomeadamente Pneumologia, Neurologia, Gastrenterologia, Hematologia,
Ginecologia-Obstetrícia, entre outras. Assim, é de grande importância o
acompanhamento destes doentes em centros com experiência e acesso a cuidados
especializados.
No Hospital de Santa Maria
(ULS Santa Maria) existe desde 2016 a Consulta Multidisciplinar de Síndrome de
Sjögren, onde doentes com a suspeita desta patologia são avaliados no mesmo dia
por especialistas da Reumatologia, Estomatologia e Oftalmologia. Após
confirmado ou excluído o diagnóstico, é programado o seguimento e tratamento
dos vários sintomas e da doença. Foram realizadas até à data mais de 900
consultas multidisciplinares, num modelo replicado recentemente com sucesso no
Hospital Egas Moniz, ULS Lisboa Ocidental.
No nosso
país está a ser feita investigação em torno desta doença rara?
Sim. Na ULS Santa Maria existe
uma Consulta de Doença de Sjögren, onde os doentes desta patologia são
acompanhados e, sempre que aplicável, propostos para participar em estudos.
Temos também uma Coleção de Doença de Sjögren de amostras biológicas (sangue,
saliva, glândulas salivares) no Biobanco da Faculdade de Medicina da
Universidade de Lisboa. No Serviço de Reumatologia da ULS Santa Maria existem
vários estudos em curso abordando diversas áreas da doença, desde mecanismos e
causas da mesma, até tratamentos e ensaios clínicos com medicamentos
inovadores. Estes estudos têm sido publicados em várias revistas científicas e
apresentados em congressos nacionais e internacionais, incluindo o Simpósio
Internacional de Doença de Sjögren, a decorrer em abril nos Países Baixos.
Adicionalmente, outros
serviços de Reumatologia do SNS e do Setor Social e Privado, como por exemplo,
o Instituto Português de Reumatologia, têm também estudos em curso, com números
grandes de doentes.
Finalmente,
é possível manter uma boa qualidade de vida com a Doença de Sjögren?
Apesar de ter sido considerada
no passado como uma doença que não afetava de forma significativa a vida dos
doentes atingidos, sabe-se hoje que a Doença de Sjögren causa uma grande
redução da qualidade de vida. O impacto desta doença traduz-se a diversos
níveis, desde logo através da fadiga inexplicável e incapacitante, e também das
dores articulares e secura da boca, olhos, pele, vaginal. Várias dimensões da
vida social, pessoal, profissional e relacional são afetadas e estão gravemente
comprometidas. Ainda assim, tem havido progressos nos conhecimentos acerca
desta patologia e a abordagem a diferentes níveis, farmacológica e
não-farmacológica, é atualmente chave para melhorar a qualidade de vida das
pessoas afetadas. O futuro próximo promete trazer-nos boas notícias, com mais
alternativas para o tratamento adequado dos doentes acometidos por esta grave e
complexa condição.
Fonte: Sapo on-line Saúde

