Tudo começou a 5 de março de 1934 – 5 de março de 2024: 90 anos de um dos maiores feitos da aviação portuguesa, realizado pelo esquecido Charles Edouard Bleck (Carlos Eduardo Bleck).
O pequeno biplano De Havilland DH60 GIII Moth Major aterrou em Goa (Índia) após quase 50 horas de voo do aeródromo da Granja do Marquês, em Sintra, de onde partiu a 19 de fevereiro. Depois de várias reviravoltas diplomáticas, nomeadamente no Egipto, e de alguns problemas técnicos e meteorológicos, o objectivo foi alcançado.
Quinze dias para alcançar o
feito, 11 mil quilômetros percorridos, um sonho realizado.
A última etapa do percurso
foi, sem dúvida, uma das mais fáceis: a ligação de Diu a Goa, 870 quilómetros
percorridos em 5 horas e 20 minutos, estando o avião preparado para voar 1.500
quilómetros de uma só vez, tendo sido adicionado um tanque adicional à frente,
mesmo ao lado do assento do piloto.
Após a decolagem de Diu, por volta das 8h, Carlos Bleck seguiu para nordeste, a 500 metros de altura, ao longo do estuário de Ranai e das ilhas de Shial e Chanka. A visibilidade não era grande por causa da neblina, eram apenas 2 quilômetros, não era ótima para navegar de olho, o vento fazia o avião se mover em todas as direções, o que tornava o pouso um pouco agitado.
Carlos Bleck foi recebido em apoteose
por toda uma multidão e pelas autoridades goesas que o reconheceram como um
herói que tinha voado sozinho na ligação aérea entre Lisboa e a Índia
portuguesa.
De regresso a Portugal, as homenagens suceder-se-ão. A um deles, agendado para 7 de Abril de 1934, Carlos Bleck convidou o sobrevivente da mais retumbante façanha da força aérea portuguesa, Gago Coutinho, que com Sacadura Cabral fizera a primeira travessia do Atlântico Sul em 1922. Gago Coutinho escreveu a Carlos Bleck a pedir desculpa por não ter podido comparecer, ao mesmo tempo que o felicitava pelo audacioso sucesso da viagem, ligando Portugal à Índia a bordo de um pequeno avião, orgulhoso do seu feito como todos os portugueses.
No jornal Diário de Notícias
de 14 de março de 1935, estava escrito: "Os aviadores Costa Macedo e
Carlos Bleck sairão hoje do aeródromo de Sintra às 8h para chegar ao Rio de
Janeiro amanhã à tarde". Gago Coutinho e Sacadura Cabral inspiraram muitos
aviadores portugueses, como Carlos Bleck. Este último queria bater o recorde do
Atlântico Sul estabelecido pelos mestres Cabral e Coutinho.
O olhar desolador de Carlos Bleck em uma foto de 14 de março de 1935 fala muito. Ele e Costa Macedo escaparam milagrosamente do colapso do trem de pouso do cometa De Havilland DH88 'Salazar' ao tentar decolar da Granja do Marquês com destino ao Brasil. O avião, com os motores a toda a potência e carregado com gasolina para a viagem, caiu no terreno acidentado da 'pista' de Sintra.
Este momento marca o fim da
notável carreira como piloto de Carlos Bleck, figura de destaque na história da
aviação em Portugal.
Carlos Eduardo Bleck teve uma
vida cheia de actividades, façanhas, recordes, amava todas as modalidades,
sobretudo os de velocidade, chegava a representar Portugal nos Jogos Olímpicos.
Mas quem é Charles Édouard
Bleck, cujo nome "aportuguesado" passa a ser Carlos Eduardo Bleck?
Precisamos voltar na história. Em 20 de outubro de 1877 nasceu em Londres Charles Henry Blec, pai de Carlos Eduardo Bleck. Desde pequeno, Carlos Henrique não conseguia ficar parado e viajava pela Europa, desempenhando várias funções.
Charles Henry Bleck fez uma
pausa em Paris aos 20 anos. Na capital francesa, trabalhou como secretário em
uma das empresas em que seu pai era sócio: a Société Torladès.
Estávamos em Paris, no meio da Belle Époque, Paris sendo o centro do mundo. Foi lá que se deparou com as obras de Picasso, Monet, Modigliani, Rodin, Toulouse-Lautrec, entre outros. Frequentou o cancan, livrarias, alta costura, admirou a Art Nouveau, descobriu as primeiras máquinas a vapor de Louis Blériot e outros aviadores, foi lá que ouviu pela primeira vez o som dos motores dos carros.
De todas essas andanças pela
capital francesa nasceu um caso, o casamento com Varsch na Scharif, de apenas
17 anos, aconteceu em 12 de abril de 1899.
Quando a notícia do casamento chegou a Lisboa, onde o pai, Joseph William Henry Bleck, já vivia, foi como uma bomba! O casamento sem o consentimento do pai é permitido? Carlos Henrique divorciou-se rapidamente e casou-se com Helena Eugénia Pedroso dos Santos a 4 de Janeiro de 1902. A 23 de Maio de 1903, nasceu Charles Édouard Bleck, mais tarde chamado Carlos Eduardo Bleck, deste casamento, optando pela nacionalidade portuguesa.
Durante sua estada em Paris,
Charles Henry Bleck foi confrontado com uma das descobertas mais fabulosas do
final do século XIX: o automóvel.
Em Portugal, chega o primeiro
carro que vai causar o primeiro acidente, um acidente contra um burro.
Charles Henry era apaixonado
pelo automóvel e em 1904 criou a Sociedade Portuguesa de Automóveis, com o
objetivo de vender carros das marcas Fiat, Zust, Trichard-Brazier, De
Dion-Bouton, Renault e muitas outras. Ele também começou a vender barcos
movidos a gás e hidroaviões.
Sem espaço, construiu a
primeira garagem própria em Portugal, em 1906, o Auto Palace (leia-se).
No mesmo ano, realizou-se em Portugal a primeira prova numa distância de 1 quilómetro, com o objetivo de estabelecer um recorde, competição organizada pelo Real Automovel Club de Portugal. A corrida teve lugar a 18 de Março de 1906 na estrada para Vallada, conduzida por José Aguiar, sendo o proprietário do carro Charles Henry Black. A distância será percorrida em 43,3 segundos, estabelecendo o recorde em 82,568 quilômetros por hora.
O Auto-Palace tornou-se o
centro da cultura automóvel em Portugal. Ocasionalmente, o filho do rei, o
infante D. Afonso, e outros membros da família real podiam ser vistos. Pelo
meio, Carlos Henrique casou-se pela terceira vez, chamando-se Maria Clementina
de Lima Mayer. Desta união nasceram em 1911 João Maria e, em 1917, Maria da
Graça.
Charles Henry Bleck passou seu
gosto pela competição para seu filho, Carlos Eduardo Bleck.
Este último competirá ao mais
alto nível, em desportos como o automobilismo, o motociclismo, a náutica...
Orgulhoso de ser português, participou nos Jogos Olímpicos de 1928, em Amesterdão, nas competições de vela, fazendo na altura parte da Associação Náutica de Lisboa.
Carlos Eduardo Bleck casou-se
com Maria José da Conceição Lobo da Silveira em 27 de maio de 1926, nas Mercês.
Isabel nasceu da união em 21 de junho de 1930.
A bibliografia de Carlos
Eduardo Bleck destaca o facto de ter sido o primeiro piloto civil português,
tendo feito o seu primeiro voo aos 15 anos, aos 19 anos, tendo ingressado, a 21
de novembro de 1922, na Escola Militar de Aviação. Em 1925 obteve o primeiro
diploma português em aviação civil de uma escola militar.
Dois anos depois, Carlos Eduardo Bleck fez a sua primeira viagem, ligando Londres-Tancos-Lisboa. Sua primeira tentativa de viajar para a Índia ocorreu, sem sucesso, em 1928. Entre 1930 e 1931 Bleck ligou Lisboa-Angola-Lisboa. Em 1930 tornou-se sócio do Aeroclube de Portugal e no mesmo ano criou a primeira escola de aviação civil em Portugal.
Em 20 de março de 1930 foi
condecorado com a Ordem Militar de Cristo como oficial, em 1º de maio de 1931
como comandante, em 11 de julho de 1931 foi condecorado com a Ordem da Torre e
Espada, do Valor e Mérito como oficial, como comendador recebeu a condecoração
da Ordem do Império em 11 de junho de 1964.
Em 20 de janeiro de 1945, Carlos Bleck fundou a Companhia de Transportes Aéreos, e também ingressou no Conselho de Administração da TAP.
Faleceu a 2 de Dezembro de
1975, em São Pedro de Penaferrim (Sintra).
Carlos Eduardo Bleck ficará
para a história como um dos heróis da aviação portuguesa, erradamente
esquecido, mas que o Luso Jornal quis aqui homenagear, no 90.º aniversário do
seu feito mais retumbante: a chegada a Goa, ligando Lisboa esta cidade
portuguesa às Índias.
Fonte: Luso Jornal (França)