Por: José Vieira
Tenho falado nos últimos meses
das entidades que nos tutelam, do pouco que nos têm ajudado e das necessidades
deste setor no seu todo. Também tenho falado, insistentemente, nas medidas que
estão em cima da mesa, como o regulamento da imprensa regional, ou mesmo os
apoios previstos, que passam a ter uma componente mais camarária, “obrigando”
as câmaras a contribuírem para o orçamento da imprensa regional. Embora não
concorde com o acordo alcançado na anterior legislatura, e que penso que se irá
manter nesta, é sempre um começo. Mas a este ponto, voltarei, com mais
pormenores, e escamotearei, com alguma profundidade, o que realmente nos querem
dar e como pode ser um presente envenenado. Mais à frente deste artigo abrirei
o apetite para um posterior artigo mais aprofundado.
Neste artigo, e o que
interessa, é falar das câmaras e enquadrar o seu papel e a sua relação com a
comunicação. Lá nos anos longínquos da década de 90, do século passado, as câmaras
eram apenas câmaras. Tinham as suas funções bem definidas, e deixavam à
imprensa local a devida tarefa da divulgação e comunicação. Era através da
imprensa local que os cidadãos sabiam as novidades, fruto de vínculos muito
profundos, entre os jornais e as pessoas. Nascíamos e crescíamos com o jornal ou
a rádio local, bem enraizado na nossa forma de viver. Era a nós que as entidades oficiais recorriam
para oficializar publicamente as suas decisões, mostrar as suas obras e
comunicar com o seu eleitorado, havendo uma equidade na forma de divulgação,
para dar espaço ao poder, à oposição e aos cidadãos. Havia desvios? Compadrio?
Títulos encostados ao poder ou à oposição? Sim, havia, mas creio que a maioria
fazia um trabalho digno de registo.
No final da década de 90 e na
viragem do século, as novas tecnologias começaram a evoluir e novas formas de
comunicação foram aparecendo. Os portais das câmaras começaram a ser mais
user-friendly, e alguém se lembrou que poderiam incluir nos portais uma área de
notícias. Não sei quem foi, mas tenho vontade de bater nesse desgraçado. Foi o
começo do descarrilamento da imprensa regional. Em poucos anos, as 308 câmaras
em Portugal começaram a adaptar os seus portais para terem uma área noticiosa.
Não se compreende como é que a entidade para a regulação (ERC) não travou isto.
De repente, tínhamos mais 308 jornais (um por cada concelho) a fazer
concorrência à imprensa regional. A estes 308 novos jornais encapotados e
parciais (pois são autênticas ferramentas de propaganda do poder instalado),
juntaram-se mais umas centenas de Juntas de Freguesia, as maiores, diga-se, que
também queriam desta forma ter portais de comunicação. E a ERC continua calada
e deixa a coisa andar. Depois, como que não satisfeitos, muitas das câmaras e
juntas começam a imprimir boletins de comunicação, a que dão nomes variados
(boletim, agenda, sumário da atividade, etc.). Na verdade, são publicações que
distribuem gratuitamente, com a propaganda do poder instalado. E a ERC continua
calada como sempre. Nada faz para defender a imprensa regional. Como a ERC nada
fez para travar esta monstruosidade, as câmaras foram mais longe. E mais longe.
E mais longe. Agora, já têm TVs Regionais e autênticos gabinetes de comunicação
(vulgo redação), onde investem anualmente centenas de milhares de euros. Mas
ainda têm mais. Muitas câmaras têm também jornais em formato tabloide, que
distribuem pelos seus munícipes, contendo também muitos deles spots
publicitários de “empresas amigas do sistema”. Em suma, desvirtuou-se todo o
papel da imprensa regional, não se vedando a possibilidade de serem
“jornalistas” de propaganda, encapotados. Se estão dentro da lei? NÃO. Não
creio que uma câmara municipal possa contratar jornalistas e deter órgãos de
comunicação social, a fazerem concorrência direta à imprensa local. O que está
mal? A falta de coragem do regulador em enfrentar esta situação. Não há, nem
pode haver na lei, nenhuma exceção, para que uma entidade pública se substitua
à imprensa devidamente registada e auditada pelo regulador. Isso é impensável. É
um autêntico atentado à liberdade de expressão, porque estes órgãos encapotados
na prática são meros instrumentos propagandistas. Então e porque não se atua? Porque
não se denuncia? Porque não se instaura um processo coletivo contra as câmaras?
Porque não se pressiona a ERC e o governo? Porque o jornalismo e os jornalistas
regionais têm andado a dormir, foram amaciados com 30 dinheiros, para fecharem
os olhos a esta situação. Há que tomar posições. Há que restaurar o equilíbrio.
As duas associações do setor já se deveriam ter mexido há muito, para combater
esta monstruosidade. Mas pensam que querem saber disto? Claro que não. E
sabemos bem a razão.
Com esta estratégia local por
parte das câmaras e juntas, inicia-se, no início do século um esvaziamento da
imprensa regional. Acelera-se a sua morte, pois não se compensa o jornalismo e
os jornalistas regionais com medidas protetoras, para não falar em medidas
compensadoras. É exatamente a mesma situação em que eu, sem formação em
medicina, quisesse abrir um consultório médico para atender doentes, ou sem
formação na área educacional, quisesse dar aulas, e podia continuar aqui mais duas
ou três páginas a dar exemplos.
Para ajudar ainda mais ao
enterro da imprensa, neste momento, uma das propostas em cima da mesa do
ministro Leitão Amaro, aprovado na anterior legislatura, com a conivência da
ANIR e da API (duas das maiores associações de imprensa em Portugal), é a de
criar uma espécie de subsídio para a imprensa regional (apenas alguma,
note-se), em que as câmaras, e mediante determinados critérios, subsidiem
diretamente alguns órgãos de comunicação regionais, escolhendo-se apenas os que
interessam. Aliás, essa listagem essa “cozinhada” por estas duas associações e
o governo, em que ficam de fora por exemplo, a imprensa digital, que representa
já 63% do setor regional. Ou seja, a mama continua para os mesmos (os regionais
que estão juntinhos ao poder), e todos os outros, que são 80% do setor, vão
morrer à beira da praia. Mais uma vez as câmaras vão ter um papel fundamental
na destruição da imprensa regional.
E quem se está a mexer para
tentar inverter esta situação? Praticamente ninguém. Continuamos a dançar o
tango, em que nos deixamos conduzir por outros. Somos a parte passiva da dança
e vamos dançar em direção ao matadouro.
Então, o devemos fazer para
lutar? Fazer o que fazemos melhor. Escrever, escrever e escrever ainda mais.
Façamos da caneta a nossa espada aguçada. Divulguemos o que está mal, apoiemos
causas que visem restaurar a nossa honra, escrevamos sem receios de retaliação.
Só assim, as coisas começarão a mudar. Só assim iniciaremos alguma coisa que
possa ter consistência e permita que se crie uma consciência coletiva forte o
suficiente para mudar mentalidades, e forçar o governo e o regulador a criarem
condições dignas de apoio ao jornalismo regional.
Colegas de profissão,
proprietários de jornais e comuns leitores, todos juntos devemos encarar este
desafio como uma missão de restaurar o equilíbrio há muito perdido, altura em
que tínhamos uma imprensa livre, em que tínhamos informação de qualidade e isenta
de pressões. Hoje, infelizmente, temos artigos “martelados”, artigos
“encomendados” e artigos que nos lavam a mente e nos direcionam para os
objetivos eleitorais ou mercantilistas, de quem mexe os cordelinhos por detrás da
cortina.
Esta promiscuidade entre o
poder e a imprensa regional corrupta tem de ser tornada publica, tem de sair
para a rua e erradicada de uma vez por todas, em nome de milhares de
profissionais que honram a sua profissão e que sofrem pelas condições de
trabalho que têm, para benefício de meia dúzia de corruptos que se impregnaram
no sistema.
Ando aqui há quase 30 anos a
fazer artigos jornalísticos, já corri meio mundo e nunca dependi de nenhuma câmara
para pagar as minhas contas. Não vai ser agora que vou mudar, isso vos garanto.
E garanto-vos mais uma coisa. Pode a vaca tossir, ou o porco andar de
bicicleta, mas este profissional da imprensa regional vai mover montanhas e só
vai descansar quando estivermos no rumo de onde nunca devíamos ter saído há
trinta anos. Quem quiser que diga presente. Quem quiser que dê um passo à
frente. Garanto-vos que não vão ser bonitos os confrontos, mas no fim haveremos
de prevalecer, em nome da verdade, da justiça e do nosso setor amplamente
debilitado.