A antiga ministra da Saúde Marta Temido considera que se aprendeu pouco com a covid-19, dando o exemplo da falta de uma lei de emergência de saúde pública que permita decisões como o confinamento, sem comprometer quem as toma
Por: Helena Neves
Foto: TIAGO PETINGA/LUSA
Cinco anos após o aparecimento
dos dois primeiros casos de covid-19 em Portugal, a 02 de março de 2020, Marta
Temido (ministra da Saúde entre outubro de 2018 e agosto de 2022) afirmou, em
entrevista à agência Lusa, que se “aprendeu muito pouco” com a pandemia que
causou cerca de 29.000 mortes em Portugal e representou um desafio para os
sistemas de saúde.
“Penso que aprendemos muito
pouco, que é para não dizer que não aprendemos nada, em todas as dimensões”,
nomeadamente na preparação e resposta a uma pandemia, disse, frisando a
necessidade de uma lei de emergência de saúde pública que garanta o enquadramento
legal necessário para as respostas numa pandemia.
Em maio de 2022, o Governo
socialista, liderado por António Costa, apresentou um anteprojeto de lei de
proteção em emergência de saúde pública, elaborado por uma comissão técnica,
com o objetivo de rever o quadro jurídico aplicável em função da experiência
vivida com a covid-19, mas até agora não houve avanços nesse sentido.
Marta Temido apontou a
fragilidade do atual quadro jurídico, especialmente no que respeita à aplicação
de medidas como o confinamento, lembrando o que se passou no início da
pandemia.
“Quando os regressados de
Wuhan [cidade chinesa onde foram detetados os primeiros casos de covid-19 no
final de 2019] chegam a Portugal, pedimos-lhes que ficassem confinados e correu
tudo no melhor dos mundos, mas tinha um texto legal, baseado nas competências
de saúde pública do ministro da Saúde” que permitia o confinamento caso não
aceitassem. Licenciada em Direito, Marta Temido sabia que “a fragilidade do
enquadramento legal desta solução era imensa”.
“Não quereria que outro
ministro da Saúde tivesse que se confrontar (…) com a necessidade de escrever
um papel que sabe que é frágil”, mas que é a única alternativa para proteger a
população, lembrou.
Apesar de reconhecer a
importância de proteger “os direitos, liberdades e garantias dos cidadãos”,
Marta Temido afirmou que “em determinados momentos não havia alternativa a não
ser o confinamento”.
“Mesmo que algumas das medidas
fossem hoje, e pouco tempo depois, consideradas absurdas, estávamos a aprender
com aquilo que estávamos a fazer”, disse.
Marta Temido disse que
gostaria que Portugal tivesse esses instrumentos que permitam “um enquadramento
claro, constitucional, de determinadas decisões”, porque não se sabe quando
ocorrerá a próxima pandemia, mas ela vai acontecer.
“Não me parece que haja
vantagem em fazer os agentes políticos correrem esse risco (…) porque acabamos
por ter que recorrer a subterfúgios que não me parece que beneficiem em nada a
transparência, nem a segurança jurídica”, declarou.
Alertou também para o “risco
muito grande” de os responsáveis não estarem disponíveis para tomar as medidas
necessárias por receio de estarem “a cometer um ato ilegal e ser julgado por
ele”, inviabilizando a proteção da população.
Para a antiga ministra que
exerceu o cargo em pandemia, a sociedade precisa estar consciente que “os seus
direitos, liberdades e garantias são tão mais fortes quanto estiverem
claramente excecionadas as situações em que podem ser limitados”.
A atual eurodeputada salientou
que a falta de preparação e recursos para combater uma futura pandemia também
se passa a nível europeu, realçando que a Autoridade Europeia de Preparação e
Resposta a Emergências tem “poucos meios financeiros”, estando “muito
dependente” da “boa vontade dos Estados-membros”.
"Os Estados-membros
esqueceram-se rapidamente daquilo que foi o sufoco da pandemia, até porque
outras necessidades aconteceram, a crise energética, a guerra”, sublinhou.
Apontou ainda que “o maior
problema das respostas em saúde” é a falta de profissionais e a falta de uma
estratégia para a força de trabalho em saúde na União Europeia.
“Corremos mesmo o risco de ter
boas instalações físicas, bons equipamentos e de não ter profissionais para
trabalharem com eles”, avisou.
Para Marta Temido, as lições
aprendidas foram poucas mesmo a nível transversal, considerando que “hoje ter
uma pandemia seria, provavelmente, muito mais difícil”.
“Aprendemos pouco para os
sistemas de saúde, aprendemos pouco para as nossas várias lutas, as várias
dificuldades, a forma como a verdade e a não verdade comungam do mesmo prato e
têm o mesmo peso”, comentou.
Alertou para o discurso de
desinformação, havendo quem continue a acreditar que “as vacinas trouxeram
imensas doenças, imensos problemas de saúde, e que foi tudo uma maquinação para
a indústria farmacêutica ganhar dinheiro e para controlar”.
“Há esse discurso, que é
absolutamente terrível, insensato e desprovido de racionalidade (…),
felizmente, ainda pouco visível em Portugal, mas cada vez mais visível”,
lamentou.
Fonte: Lusa