O Ozempic, um medicamento administrado por via injetável, imita uma hormona natural fabricada pelo organismo com uma grande variedade de efeitos, deste estimular a libertação de insulina, abrandar a digestão, diminuir o apetite e até reduzir o interesse do cérebro na comida.
O Ozempic, o Mounjaro e outros
medicamentos semelhantes têm dominado as parangonas nos últimos anos, à medida
que os estudos iam mostrando a sua eficácia no tratamento da diabetes tipo 2 e
da obesidade. Agora, um novo estudo revela que esta classe de fármacos,
conhecida como agonistas do GLP-1, também pode reduzir a inflamação no
organismo. Essa descoberta sugere que poderão ser úteis no tratamento de um
vasto leque de doenças, nomeadamente Alzheimer e Parkinson, ou pelo menos
inspirar a investigação de novas formas de tratar doenças neurodegenerativas ou
auto-imunes.
O novo estudo, publicado em
Dezembro na revista Cell Metabolism, sugere que uma das principais formas como
os fármacos actuam é induzindo o cérebro a enviar sinais para reduzir a
inflamação em todo o organismo.
Isto tem “vastas implicações”, em parte devido ao
uso generalizado destes fármacos, diz Mike Schwartz, endocrinologista da
Universidade de Washington, em Seattle, que não participou no estudo. Pensamos
em utilizar estes fármacos para tratar a obesidade e a diabetes tipo 2, mas
talvez existam outras formas de utilização, diz Schwartz.
A inflamação é a resposta do
sistema imunitário às ameaças sentidas pelo organismo. Um bom tipo de
inflamação é quando o sistema imunitário se prepara para combater um patógeno,
como uma bactéria ou um vírus, mas as doenças metabólicas, como a diabetes tipo
2 e a obesidade, envolvem uma inflamação não-saudável que pode danificar os
tecidos. “Precisamos da inflamação boa para
combater as infecções”, diz o autor sénior do estudo Daniel
Drucker, endocrinologista do Instituto de Investigação Lunenfeld-Tanenbaum e da
Universidade de Toronto, no Canadá. “Mas não
queremos que a inflamação persista ao longo do tempo, sobretudo se tivermos
esses problemas metabólicos, porque vai causar complicações cardíacas, diabetes
e obesidade”.
Há muito que se sabe que a inflamação diminui quando as pessoas tomam agonistas do GLP-1, mas ninguém sabia como ou porquê.
Para além
da perda de peso e da diabetes
GLP-1 significa Peptídeo
Semelhante ao Glucagon-1, uma hormona natural fabricada pelo organismo que tem
uma vasta gama de efeitos, incluindo estimular a libertação de insulina,
abrandar a digestão, diminuir o apetite e até reduzir o interesse do cérebro em
comida.
Os fármacos agonistas do GLP-1
que imitam esta hormona como o Ozempic e o Mounjaro foram inicialmente
desenvolvidos para tratar a diabetes tipo 2, mas ensaios clínicos posteriores
revelaram o seu potencial para tratar a obesidade. O Ozempic, cujo ingrediente
activo é o semaglutide, foi mais tarde aprovado como Wegovy para tratar a
obesidade, e o Mounjaro, cujo ingrediente activo é o tirzepatide, foi
recentemente aprovado sob o nome Zepbound para tratar a obesidade. Outro
agonista do GLP-1 utilizado neste estudo, denominado exenatide, é um
medicamento para a diabetes conhecido pelos nomes de marca Bydureon e Byetta.
Os ensaios clínicos continuar a explorar a forma como estes fármacos podem ser
úteis para outras condições.
Por exemplo, um grande estudo
realizado no final de 2023 revelou que o semaglutide reduz o risco de ataques
cardíacos, AVCs e morte cardiovascular. Outros ensaios demonstraram que o
semaglutide pode melhorar a doença do fígado gordo e a doença renal crónica. Há
outros ensaios clínicos em curso para investigar os efeitos dos agonistas do
GLP-1 em doenças como a depressão, perturbação alcoólica e adição em nicotina,
bem como as doenças de Alzheimer e Parkinson.
No entanto, enquanto tentam
descobrir as diversas formas como estes fármacos podem afetar diferentes
doenças humanas, os investigadores também estão a tentar descobrir como
funcionam.
Inflamação
no organismo
Drucker queria descobrir como
os agonistas do GLP-1 diminuem a inflamação sistémica no organismo, conforme
demonstrado por uma década de investigação.
Os agonistas do GLP-1
funcionam activando os receptores de GLP-1 – proteínas existentes à superfície
de determinadas células. Quando estes receptores recebem um sinal da hormona
GLP-1, a célula é impelida a completar todas as funções do GLP-1. A maioria das
células que possuem muitos receptores de GLP-1 encontram-se no pâncreas – a
localização das células que produzem a insulina e no cérebro, que diminui o
apetite e controla o sistema de recompensas relacionadas com a comida. No
entanto, existem em todo organismo células que também possuem recetores de
GLP-1, embora em menos quantidade, e reagem à hormona.
Apesar de estudos recentes
terem demonstrado que os agonistas do GLP-1 reduzem o risco de doença
cardiovascular, o coração não tem muitos recetores de GLP-1, diz Drucker. Do
mesmo modo, apesar de os estudos mostrarem que os agonistas do GLP-1 melhoram a
doença hepática e renal, esses órgãos também não têm muitos recetores de GLP-1,
levantando questões sobre a forma como os fármacos agonistas do GLP-1 exercem
um impacto tão significativo nesses órgãos.
Os glóbulos brancos as células
inflamatórias do sistema imunitário – possuem recetores de GLP-1, mas “era evidente que os agonistas do GLP-1 diminuíam a
inflamação para além do seu efeito direto sobre os glóbulos brancos”,
diz Eva Feldman, neurologista da Universidade do Michigan. Simplesmente não
existiam receptores do GLP-1 suficientes nos glóbulos brancos para justificar o
quanto esses fármacos reduziam a inflamação.
Enquanto realizava várias
experiências, a equipa de Drucker acabou por deduzir que o GLP-1 “deve estar a funcionar, pelo menos parcialmente, de
forma indireta”, possivelmente através do sistema nervoso, “porque é o único sistema que temos que é capaz de
comunicar com todas as partes do nosso corpo?”, diz Drucker. “É o nosso cérebro e o nosso sistema nervoso. Conseguem
enviar sinais para todo lado”.
Poderá o
cérebro reduzir a inflamação em todo o lado?
Para testar essa hipótese, os
investigadores começaram por induzir inflamação em ratos. Numa experiência,
activaram a inflamação com químicos sintéticos. Noutra utilizaram uma mistura
de bactérias. Em seguida administraram exenatide, semaglutide (Ozempic), ou tirzepatide
(Mounjaro) aos ratos e mediram as subsequentes diminuições da inflamação
causadas por cada fármaco.
Na experiência seguinte, os
cientistas criaram diferentes estirpes de ratos através de engenharia genética
de modo que não possuíssem recetores de GLP-1 em várias partes do organismo:
nos glóbulos brancos, em diversos órgãos e no cérebro.
Mais uma vez, os
investigadores induziram a inflamação em cada um dos ratos, administraram-lhes
exenatide, semaglutide ou tirzepatide e observaram se os fármacos suprimiam a
inflamação. “Quando bloqueámos os recetores
de GLP-1 no cérebro”, diz Drucker, “deixámos de conseguir suprimir a inflamação” noutras partes do corpo. Os ratos sem recetores
de GLP-1 no cérebro tinham substancialmente mais inflamação do que os outros
ratos após a toma do fármaco.
Isso sugere que a ausência de
recetores de GLP-1 no cérebro impede os fármacos agonistas do GLP-1 de
reduzirem a inflamação tão eficazmente como o fizeram nos outros ratos, que não
possuíam recetores noutras células ou órgãos.
A descoberta é surpreendente
porque “a perceção geral é que não é assim
que a inflamação funciona”, diz Schwartz. As ideias
convencionais sobre a inflamação sugerem que o tecido danificado envia sinais
dizendo ao sistema imunitário o que fazer e continua a ser provável que isso
também aconteça. No entanto, estas descobertas mostram “que o cérebro está a desempenhar um papel e que pode ser
um alvo terapêutico”, diz Schwartz.
Os passos
seguintes
Já se sabia que os fármacos
agonistas do GLP-1 poderiam reduzir a inflamação de outras formas. Uma delas
era diminuindo a glucose e o tecido gordo, uma vez que os níveis elevados de
glucose e as células gordas provocam inflamação. Outra devia-se ao facto de os
poucos recetores de GLP-1 existentes nos vários órgãos poderem efetivamente
desempenhar um papel na equação. No entanto, nenhum destes dois mecanismos era
suficiente para explicar a diminuição da inflamação. “Acho que é a terceira peça do puzzle”,
diz Drucker. “Talvez parte da explicação se
deva ao facto de o cérebro mandar estes outros tecidos e órgãos reduzir a
inflamação”.
Drucker permanece cauteloso em
relação ao significado destas descobertas. “Não
quero fingir que isto é a resposta completa”, diz, mas o estudo “deu origem a uma nova forma de pensar sobre as vantagens
do GLP-1 a longo prazo”. Os próximos passos são descobrir como o
cérebro reduz a inflamação, talvez através de experiências que, por exemplo,
instruam nervos específicos para reduzir a inflamação.
Um estudo do laboratório do
neurocirurgião Kevin Tracey publicado no ano 2000, por exemplo, demonstrou que
o nervo vago pode desactivar a inflamação. Mas o corpo possui muitas vias
nervosas diferentes. “Acho que, ao longo dos
próximos anos, vamos ver uma série de experiências adicionais que vão tentar
identificar com mais precisão essas vias”, diz Drucker.
Uma das esperanças é que uma
melhor compreensão de como os agonistas do GLP-1 reduzem a inflamação no
cérebro possa revelar possíveis terapias para doenças neurodegenerativas como a
doença de Alzheimer. Está bem assente que a inflamação no cérebro contribui,
provavelmente, para a doença de Alzheimer, razão pela qual a inflamação se
tornou um alvo terapêutico para o tratamento da doença nos últimos anos. “Mas qual a melhor forma de alterar essa inflamação e se
essa alteração irá igualmente mudar o desenvolvimento da doença é algo que não
se sabe tão bem”, diz Feldman. As descobertas de Drucker “podem ser mesmo boas para as doenças neurodegenerativas,
mas o júri ainda não se pronunciou”.
Drucker é igualmente cauteloso
no que diz respeito ao significado destas descobertas para o tratamento de
condições como a doença de Alzheimer, que há muitos anos escapam a terapias
eficazes. Do mesmo modo, embora a inflamação desempenhe um papel na doença de
Parkinson, ainda é demasiado cedo para saber se os agonistas do GLP-1 conseguem
abrandar a progressão da doença, sobretudo quando os estudos realizados com
ratos têm previsto menos bem o sucesso nas áreas da doença neurodegenerativa do
que na inflamação e no metabolismo. A implicação mais vasta destas descobertas
é que os cientistas podem querer pensar em investigar se o cérebro poderá ser
um alvo terapêutico não só para tratar doenças metabólicas, como estados
inflamatórios. “Não estou a dizer que
funcione”, diz Schwartz, “mas
abre bastante essa porta”.
Tal como qualquer boa
descoberta científica, diz Tracey, presidente e director executivo dos
Feinstein Institutes for Medical Research, em Nova Iorque, o estudo responde a
algumas questões, mas levanta muitas mais. “Acho
que vai gerar mais interesse quanto a um aspecto relevante: o que mais podemos
fazer para saber como isto funciona no tratamento da inflamação e,
potencialmente, desenvolver mais ensaios clínicos que possam ajudar muitas
pessoas”.
Transpondo
as descobertas dos ratos para o ser humano
Uma das grandes ressalvas do
estudo de Drucker é que foi realizado com ratos. “Existe
sempre uma lacuna entre aquilo que é possível saber nos seres humanos e aquilo
que podemos inferir a partir dos modelos animais”, diz Schwartz.
Mas os dados são suficientemente sólidos, afirma, “para se alguém aparecer e disser ‘bem, isso não se aplica ao ser
humano’, ser responsabilidade dessa pessoa provar por que não”.
Tracey concorda que alguns
estudos com ratos se transpõem melhor para o ser humano do que outros e este é
um dos mais transponíveis. “Nos últimos 30
anos, tenho ficado impressionado com a quantidade de coisas que é possível
transpor dos ratos para o ser humano nas áreas da inflamação e do metabolismo”,
diz Tracey. No entanto, ele e outros cientistas permanecem cautelosos quanto ao
que isto significa, especificamente no que diz respeito ao uso de fármacos
agonistas do GLP-1. “Ainda estamos a descobrir
as vantagens e os riscos de uma nova classe de fármacos”, diz
Tracey. “Estas coisas demoram muito tempo
antes de compreendemos bem como funcionam e como podemos utilizá-las”.
Fonte: National Geographic
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